Tipo de leitura: livro
A literatura de Bernard Cornwell tem um sabor muito particular – tanto que muito tem se falado dela. Sempre há quem não curta, aqueles que descobrem logo seu padrão e se cansem, etc. Todos, até Tolkien – especialmente Tolkien… – se tornam chatos se consumidos como a única verdade narrativa.
Mas, se observarmos bem, é justamente o padrão da literatura de Cornwell que dá um gosto especial a seus livros. O estilo do escritor inglês tem um poder curioso, próprio de livros amplamente adorados: ele escreve o que o queremos ler e se aprimora ao longo de grandes textos. Talvez por isso – além da grana… – ele se dedique a escrever séries. Porque pode muito bem ter percebido a mágica de trabalhar com o leitor durante longas “campanhas”.
Não é só isso, claro. A ficção histórica de Cornwell mistura verdade e tom épico em uma medida que, acredito, atraia públicos apartados. De amantes de História a leitores de fábulas, temos uma zona de interseção muitíssimo bem aproveitada pelo escritor. Usando lendas do imaginário ocidental e acrescentando a elas os (ironicamente) quase desconhecidos detalhes da história acadêmica, o autor britânico cria sagas memoráveis. Seus personagens – principalmente seus coadjuvantes - são trabalhados no limite do caricato e do humano e isso é o coração de tudo. Temos aqui, nessa semi-picaretagem de literatura quase industrial – um amontoado de figuras divertidas, comoventes, extremamente apropriadas ao cenário onde suas histórias se desenrolam.
Não se trata de ignorar o fato de que o autor usa alguns anacronismos – como ao tentar imprimir sentimentos bastantes “modernos” a protagonistas da alta ou baixa “Idade Média”. Mas isso não tira o brilho da coisa: Cornwell, ao que parece, aprendeu a formatar a maior parte de suas licenças poéticas com muita sinceridade – registrando em seus apêndices, nos finais dos romances, as liberdades e dúvidas que compõem suas histíorias.
Se há um ponto realmente negativo em se ler este escritor é o espaço temático relativamente curto de sua ficção: basicamente a Era Medieval ou o universo histórico ligado a Inglaterra. Mas mesmo isso, se me permitem, tem uma explicação que satisfaz: é mais divertido e eficiente falar sobre o que sabemos. O que, no caso, é uma verdade perfeitamente razoável.
E o que fica para os Contadores de História?
Alguns pontos-dicas nascem das sagas de Cornwell. Reflexões sobre como contar algo em períodos onde o modo de vida tinha marcas de violência, vassalagem e era constituido, basicamente, de imundices (materiais ou simbólicas). É aqui o ponto que liga a narrativa de Cornwell a tantas faces da apresentação de alguns RPGs de fantasia. Entre eles, vejam só: a Quarta Edição de Dungeons & Dragons (achou que eu ia que falar de quê, cara pálida?).
As novas marcas do mundo fantástico de D&D estão próximas ao que Cornwell retira do medievalismo: um mundo vasto, desconhecido, filho de um passado glorioso, mas perdido. Uma terra terrivelmente decadente onde poder (monstros, males, espíritos ou senhores) governam a vida e limitam os caminhos. Essa relação me faz pensar, portanto, na lista de conexões entre uma fantasia “medieval” rpgística e uma leitura literária de um passado tão questionado. É quase como se Bernard Cornwell sugerisse ao mestre de D&D (estou pouco modesto hoje…) o seguinte:
- Suje as coisas. Uma boa narrativa vem do que há de podre no cenário. As pessoas mijam, cagam, trepam e falam dessa forma. Palavrões podem ser coisas desaconselhadas para o bom comportamento em público, mas em uma narrativa eles dão vida a um aspecto quase sempre esquecido do mundo (e se você tem menos de catorze anos nem deveria estar jogando isso, filho…)
- A guerra não é um bom lugar. Pode haver glória na luta e personagens guerreiros lembrarão e viverão por ela. Mas, ainda assim, eles saberão a dura trilha que escolheram. As pessoas morrem ou são aleijadas no combate, todos os dias. E isso causa um medo ou uma locura em quem escolhe o caminho da batalha.
- As pessoas mais estranhas, filhas do mundo apodrecido, podem ser grandes coadjuvantes. O mago curvado, o médico judeu, o marinheiro de boca suja e o rei erudito-em-meio-a-crise são parte do elenco cornwelliano e lembram como o incomum e o reles podem incrementar um cenário. Pense nos carcereiros, nos soldados desertores, nas prostitutas bêbadas e seu mundo pode ficar mais “palpável”.
- Um conselho velho, mas que o autor deixa com inovação: as cenas têm cheiro. Não apenas o cheiro comum, mas o cheiro que se relaciona ao evento. Cornwell, felizmente, não se vale de metáforas ou comparações olfativas com muita facilidade, mas faz do cheiro um participante da descrição, sempre apelando para aquilo que choca, que vai além da limpeza e lembra ao personagem onde ele está.
- Cuide para que suas histórias tenha vilões realmente odiosos. De preferência, mais de um. Não crie um oponente único, que centre os desafetos e as raivas dos protagonistas. Ao invés disso, prefira vários inimigos que, no devido tempo, possam ser vencidos – apenas para dar lugar a um mais maligno e mais terrível.
É isso. A idéia de que literatura afeta nossa forma de ver narrativa – em RPG – é bem defendida. Mas, convém pensar sempre em exemplos práticos, certo? Tentei isso aqui, um pouco. Volto pra tentar de novo.
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